O papa Francisco irá entrar o quinto ano de seu pontificado lidando com o que muitos acreditam ser a maior crise do catolicismo desde que um grupo conservador dissidente foi expulso da Igreja Católica em 1988.
O motivo não é muito diferente daquele que levou o então arcebispo francês Marcel Lefebvre a ser excomungado por criar bispos sem permissão de Roma: o embate entre visões tradicionalistas da fé e o mundo moderno.
Para usar a expressão inglesa, contudo, é preciso aplicar um grão de sal ao apreciar essa sentença simplificadora. Francisco não representa nenhuma ruptura de visões como a crítica ao controle de natalidade ou ao casamento gay, como muitos ativistas progressistas gostam de crer.
O que o argentino Jorge Mario Bergoglio vem fazendo em seu papado é estimular um relaxamento de visões dogmáticas de questões como a possibilidade de divorciados tomarem a comunhão. Opõe-se à ideia de uma igreja menor e mais coesa, defendida pelo seu antecessor, o papa emérito Bento 16.
E busca combater a burocracia do Vaticano, personificada pela Cúria Romana.
“O esforço em reformar o clero e dar poder a laicos gera resistência. Ele denuncia o clericalismo”, diz o especialista em Vaticano Thomas Reese, do Religion News Service. Jesuíta como Francisco, o americano não esconde sua admiração pelo papa. “Sua mensagem de compaixão ressoa no mundo todo”, afirma, explicando a boa imagem que Francisco trouxe à igreja após os anos introvertidos de Bento 16 (2005-2013).
É um conflito com muitas etapas. Com poucos meses no cargo, Francisco proibiu uma ordem franciscana de rezar missas em latim, algo desencorajado após o Concílio Vaticano 2º, iniciado por João 23 em 1961 e que “abriu as janelas da igreja para o mundo”, como dizia o então pontífice —aliás, feito santo por Francisco no mesmo dia que João Paulo 2º, o conservador que antecedeu Bento 16.
Formou uma comissão de cardeais para reformar procedimentos da Cúria, prometeu escrutinar as finanças do Banco Vaticano, declarou que a igreja tinha de amar os homossexuais, rejeitou os paramentos medievais que Bento 16 usava ostensivamente e foi morar num quartinho da hospedaria Casa Santa Marta, longe do refinamento do apartamento papal.
Foi além: em 2015, falou abertamente que a Cúria sofria de “mal de Alzheimer espiritual” e era infectada por um “rio de corrupção”.
Francisco mirou adversários internos. O mais poderoso deles, o cardeal americano Raymond Burke, perdeu o controle do poderoso órgão judiciário do Vaticano em 2014. O movimento seguinte do papa, contudo, colocou o religioso na linha de frente da resistência tradicionalista.
Em 2016, após dois encontros de bispos para discutir os problemas das famílias, o papa divulgou o documento “Amoris Laetitia” (“A alegria do amor”, em latim). Burke disse à reportagem neste ano que o resultado foi uma confusão reinante entre fiéis e padres.
Aderentes como Reese negam essa leitura. Dizem que o papa apenas apresentou soluções práticas ao defender que divorciados pudessem receber a comunhão, algo visto como herético pela ala tradicionalista.
Burke e outros três cardeais enviaram uma carta a Francisco elaborando cinco perguntas, a “dubia”. Sem resposta, fizeram o texto público e incendiaram o mundo católico. De quebra, o papa interveio na tradicional Ordem de Malta, da qual o americano é patrono, só para ver inéditos panfletos questionando sua piedade espalhados perto do Vaticano.
Francisco nunca respondeu, embora tenha criticado aqueles que “pensam em preto e branco” em entrevistas.
O cisma persiste, um ano depois. Em novembro, a Conferência dos Bispos dos EUA exigiu a renúncia de um de seus principais teólogos, o frade capuchinho Thomas Weynandy. Popular autor de livros sobre o catolicismo, ele havia enviado uma carta ao papa, dizendo que a confusão sobre a “Amoris Laetitia” trazia “escuridão”.
Antes, um grupo de 62 teólogos e leigos católicos dos EUA havia publicado uma carta ainda mais dura, na qual acusava Francisco de se abrir a heresias em sete de seus comentários doutrinários mais recentes.
“Essa oposição vem de um grupo pequeno. É um resultado da perseguição sofrida por brilhantes teólogos sob os papados de João Paulo 2º e Bento 16. Temos uma geração de padres educados a aplicar as regas sem discernimento”, diz Reese.
Já uma série de religiosos conservadores pensa diferente. Em sua conta no Twitter, o padre e blogueiro britânico John Hunwicke chamou a punição a Weynandy de “ato vulgar e barato de humilhação”, e um padrão recorrente no papado de Francisco sobre como tratar o dissenso.
A reportagem falou com Weynandy, mas ele preferiu indicar teólogos alinhados a si a conceder entrevista. Nenhum aceitou falar publicamente, mas sob reserva um deles chamou o papa de “autoritário com quem discorda dele”.
O catolicismo está em declínio, em especial na Europa. Há 1,2 bilhão de fiéis, contudo, a maior denominação cristã do mundo e uma influência sem paralelo na história da humanidade.
Segundo pesquisa do Datafolha, 50% dos brasileiros se diziam católicos em 2016; eram 75% em 1994.
Bento 16 tentou reverter a sangria optando por uma igreja mais ortodoxa, sem sucesso e ao fim sendo engolido pela máquina da Cúria. Francisco foi pelo caminho inverso e, aos 81 anos, há dúvidas sobre quanta força terá para manter o curso.
Teóricos da conspiração podem ver no embate um enredo para algo dramático.
Aqui, a ficção pode ser boa conselheira: na aclamada série de TV “O Jovem Papa”, numa cena o pontífice americano vivido por Jude Law troca o prato de comida com seu melífluo secretário de Estado, o número 2 da igreja.
O cardeal sorri pelo temor de envenenamento do papa, contestado por seu conservadorismo extremo, e observa secamente que o método está fora de moda no século 21.
Fonte: FolhaPress
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